Denise Goulart fala sobre seu pai, o presidente Jango
16 de maio de 2013
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Denise Goulart, filha de Jango, em entrevista à revista Brasília em Dia, conta detalhes que envolveram episódios marcantes da vida de seu pai João Goulart.
Ainda sem data marcada, a exumação dos restos mortais do ex-presidente no cemitério de São Borja, pedida pela família, durante audiência da Comissão Nacional da Verdade em Porto Alegre, pode esclarecer a suspeita que Jango tenha morrido por envenamento. Leia abaixo a entrevista na íntegra.
Desde 2005, Denize Goulart, filha de João Goulart se empenhou em resgatar a memória de seu pai, que começou como um bem-sucedido fazendeiro, que multiplicou a herança recebida e que acabou reduzido pela política, após longas conversas com Getúlio Vargas. Depois de seu autoexílio na Fazenda Itu, renunciou à Presidência da República, em 1945, saindo do cenário político com a eleição de marechal Eurico Gaspar Dutra.
Ainda sem data marcada, a exumação dos restos mortais do ex-presidente no cemitério de São Borja, pedida pela família, durante audiência da Comissão Nacional da Verdade em Porto Alegre, pode esclarecer a suspeita que Jango tenha morrido por envenamento. Leia abaixo a entrevista na íntegra.
Será agora ou não?
Desde 2005, Denize Goulart, filha de João Goulart se empenhou em resgatar a memória de seu pai, que começou como um bem-sucedido fazendeiro, que multiplicou a herança recebida e que acabou reduzido pela política, após longas conversas com Getúlio Vargas. Depois de seu autoexílio na Fazenda Itu, renunciou à Presidência da República, em 1945, saindo do cenário político com a eleição de marechal Eurico Gaspar Dutra.
João Goulart já era um homem rico e não precisava fazer da carreira política um trampolim para a sua ascensão social e econômica.
Aos 17 anos, foi deputado estadual, depois federal, secretário estadual, ministro e duas vezes vice-presidente da República – de Juscelino e de Jango.
Demorou muito tempo para exumar sua morte, por iniciativa da secretária de Direitos Humanos do governo federal, Maria do Rosário, que receberia uma representação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
João Vicente Goulart, filho dele, afirmou: “Para a família é um terrível martírio. Convivemos esses anos todos sem saber exatamente o que aconteceu”.
Certamente agora tudo será entendido.
- Afinal, como foi o comício da Central do Brasil que levou o presidente João Goulart para o exílio?
- Vamos por partes porque o comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro aconteceu, por coincidência, em uma sexta-feira 13. Mobilizou 120 mil pessoas, que se espalharam pela Avenida Presidente Vargas, com cartazes que acusavam os “gorilas” e pediam reformas. Seis dias depois eles reagiram em São Paulo com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade que levou 500 mil pessoas para as ruas com terços na mão, fitas de Filhas de Maria e cruzes na lapela. Sabiam que haviam milhares de militares infiltrados.
- Surgiu também o cabo Anselmo...
- Isso foi no dia 26 de março, quando a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, sob a licença do cabo Anselmo, convocou uma assembleia-geral na sede da Petrobras, cujo único objetivo era o de dar um pretexto para que o almirante Aragão fizesse um discurso incendiário. A consequência disso foi a prisão de 35 líderes da assembleia, determinada pelo ministro da Marinha, Sylvio Motta. O almirante Aragão recusou-se a prendê-los, aumentando a crise a partir da revolta dos marinheiros.
- A partir daí surgiu o pronunciamento de João Goulart no Automóvel Clube?
- Seria o último pronunciamento do meu pai como presidente, transmitido pelas emissoras de rádio e televisão. Ele antecipava o que viria e ressaltava que os mesmos golpistas que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, buscavam derrubá-lo. Não deu outra: no dia seguinte começou o golpe.
- O presidente ainda tentou organizar uma resistência?
- Lá no Palácio das Laranjeiras, meu pai saiu e se reuniu com os generais da sua confiança, ao mesmo tempo em que dava instruções para o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, para que ocupasse a Rádio Nacional e formasse outra vez a Rede da Legalidade, como o Brizola fizera três anos antes. Mas os golpes estavam ocupando cada vez mais espaço, restando como última esperança uma reação do Rio Grande do Sul. No primeiro dia de abril ele constatou que não havia nada mais a fazer.
- Qual foi a sua decisão imediata?
- Embarcou para Brasília e foi direto para a Granja do Torto para nos pegar. Assim iniciou o caminho percorrido até o exílio.
- O que mais marcou a senhora naquele dia?
- Eu tinha seis anos e me recordo muito bem que entramos no avião e ficamos aguardando a decolagem por mais de duas horas. Estranhamente, as turbinas não funcionavam. Tivemos que trocar de avião e assim que chegamos a Montevidéu ele falou: “Não quero que se derrame por mim uma só gota de sangue”.
- Por que ele optou pelo Uruguai?
- Ele gostava muito do Uruguai, pois se sentia bem por lá, mas a saudade era grande e muitas vezes o deixava nostálgico.
- Ouviu queixas?
- Minha mãe falou que ele ficou muito triste porque as autoridades do seu país lhe negaram um passaporte brasileiro quando resolveu procurar tratamento para o coração, que começou a baquear. Iria a Paris e depois para Londres, onde eu e João Vicente morávamos. Descobriu-se depois que o objetivo da Operação Condor era matar um de nós dois. O Alfredo Stroessner foi quem lhe deu um passaporte paraguaio para embarcar. Fez a viagem, mas morreria poucos dias depois dormindo ao lado da minha mãe. Felizmente não soube que fizeram de tudo para impedir que fosse sepultado em terras brasileiras, mas acabaram permitindo que descansasse eternamente na terra que tanto amava!
- Quando Jango voltou, ele também veio?
- Não. Ele cumpriu uma verdadeira maratona aérea, ganhando tempo para que a crise política fosse contornada. De Paris foi a Nova York, de onde seguiu para Miami, Cidade do Panamá, Buenos Aires e Montevidéu, onde se encontrou com Tancredo Neves que lhe explicou o modelo parlamentarista como sendo a única alternativa para a crise alimentada pelos militares. No dia primeiro de abril, embarcou em um avião da Varig com destino a Porto Alegre enquanto que no dia seguinte o Congresso Nacional aprovava a Emenda Constitucional, criando o sistema parlamentarista. Mais uma vez a Constituição tinha como destino a lixeira da história e assim meu pai continuou presidente, mas com os poderes reduzidos. Sem dúvida foi um golpe militar maquiado.
- Afinal, ele pôde desembarcar em Brasília?
- Não foi tão fácil assim, não. Oficiais da Força Aérea insatisfeitos com a sua volta montaram a Operação Mosquito, cujo objetivo era interceptar e até derrubar o avião em que ele viajaria. Coube ao então general Ernesto Geisel abortar essa sinistra operação, que manteve retido durante muitas horas o vôo da Varig de Porto Alegre para Brasília. Vale acrescentar, porém, que quando desembarcou de noite em Brasília, estava esperando o general Ernesto Geisel. Mas ele não tomou posse logo, então preferiu nos esperar para assistir a solenidade e, só dois dias depois, prestou julgamento como presidente da República aos 42 anos de idade.
- A partir desse momento que começou o calvário, que foi até o dia 31 de março de 1964...
- Cada vez mais eu me convenço de que seu calvário começou mesmo foi com a morte do Getúlio Vargas. Lembro-me de que um dia meu pai foi conversar com o presidente e ele contou na véspera da madrugada que Getúlio se matou. Entregou ao meu pai uma carta lacrada dizendo o seguinte: “Toma Jango, guarda contigo para ler em casa. Vai hoje mesmo para o Rio Grande...”. Obediente e leal, ele fez como o velho amigo pediu. Só em Porto Alegre abriu o envelope, que continha como uma cópia da Carta-Testamento. Poucas horas depois, tinha conhecimento da tragédia que marcou a história brasileira.
- Como foi isso?
- No dia 19 de abril de 1949, Getúlio Vargas comemorou seu aniversário na Fazenda São Vicente, da minha família, e todos almoçavam quando, de repente, meu pai anunciou que iria falar. Subiu em uma árvore e lançou sua candidatura vitoriosa.
- Por que tanto empenho em resgatar a memória política de Jango?
- Por causa de uma constatação óbvia: a história sempre é feita pelos vitoriosos, pois eles dão uma versão que acaba prevalecendo como verdade absoluta, com um agravante no pós-64 em que os meios de comunicação estiveram entre a cruz e a baioneta, praticamente tutelados pelos generais depois da edição do AI-5. Durante quase 20 anos eles varreram da história os líderes civis de antes do golpe, que só a partir de 1985 passou a ter espaço na mídia. Durante muitos anos foram ignorados e desconhecidos pelas gerações que surgiram. No caso do meu pai, a situação é mais dramática porque ele não teve a oportunidade que os outros alcançaram, de retomar o espaço político que lhe foi violentamente tomado. Vejo muitas rasuras em sua biografia, feitas seguramente pelos adversários políticos, e eu considero um dever, que assumo prazerosamente, restabelecer para a história toda a verdade. Quero mostrar para as novas e futuras gerações quem foi João Goulart.
- Como o senhor João Goulart seria hoje?
- Um homem de visão, coisa que não vejo ser reconhecido. Insistem em apresentá-lo injustamente como um inconsequente que quase levou o país para uma guerra civil, hesitante entre a esquerda e a direita, mas não é nada disso. Era um homem de grande visão.
- Cite um exemplo.
- Hoje o mundo está com os olhos voltados para a China, que emerge como uma grande potência mundial. Meu pai se encontrava exatamente na China quando foi surpreendido com a renúncia de Jânio.
- Como foi o reencontro com o seu pai?
- Nós éramos piás e então surgiu meu pai, muito emocionado, comentando: “Como eles cresceram!”. Como se tivéssemos passado um ano longe dele. Ficou poucas horas com a gente porque teria que voltar a Paris, onde daria uma entrevista à imprensa na embaixada brasileira já como presidente a ser empossado.
- A senhora apurou o que ele disse de essencial na entrevista?
- Ao contrário do que diziam, meu pai era um homem muito equilibrado e de grande sensibilidade política. Posso repetir exatamente o que ele disse de mais importante em um recado a ser dado ao Brasil: “Na minha condição de brasileiro e em consideração ao cargo que ocupo, meu maior interesse é que o país se mantenha dentro da ordem legal. Esta é a única solução compatível com as profundas tradições democráticas e aspirações do país na senda indispensável para seu progresso e a condição essencial da sua soberania”.
- O que mais?
- Em poucas palavras ele disse tudo, finalizando depois: “Só se poderá estabelecer um novo governo com a colaboração de todas as forças responsáveis do país”.
- Carlos Lacerda e João Goulart não eram muito amigos?
- Sem dúvida, principalmente depois daquela do Lacerda... Como o Lacerda estava dando trabalho depois do golpe militar, o marechal Castello Branco resolveu nomeá-lo embaixador para explicar a revolução no Brasil. Iria pra Europa e Estados Unidos. A primeira escala foi em Paris onde ele desembarcou certamente sob o efeito do jet lag. Láa mesmo em Orly daria entrevista coletiva e um repórter francês do “Le Figaro” fez a primeira pergunta: “Como o senhor explica uma revolução sem sangue?”. Mesmo assim, Lacerda, com seu temperamento mercurial, respondeu na bucha: “É porque revolução no Brasil é como casamento na Franca: não tem sangue!”. Imagine o caso diplomático que causou!
- Depois de voltar ao Brasil, o que o presidente encontrou?
- Ele cumpriu uma verdadeira maratona aérea, ganhando tempo para que a crise política fosse contornada. Depois de Paris foi para Nova York, de onde seguiu para Miami, Cidade do Panamá, Buenos Aires e Montevidéu.
- E sobre o parlamentarismo?
- Aquilo foi uma opereta, pois reduziu os poderes do presidente da República e ainda determinou a descompatibilização de todo o gabinete, o que não existe em um governo parlamentarista. O Tancredo Neves, que foi o primeiro-ministro, teve que se descompatibilizar e o país praticamente ficou sem comamdo porque depois que Tancredo assumiu, Brochado da Rocha tinha tudo para dar errado, até o país decidir, através de um plebiscito, a volta do presidencialismo.
- Uma pergunta que tem de ser explicada: em plena Guerra Fria, a aproximação de Jango com Mao e Kruschev não incomodou John Kennedy?
- Claro que sim. Incomodou muito, diante do cenário complicado que havia, principalmente porque no Nordeste, o Francisco Julião abriria uma frente de luta contra o que acusava de latifúndio e exploração através das Ligas Camponesas, pregando a conquista das terras por bem ou por mal. Ocorreram choques e João Pedro Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sape, foi morto na Paraíba. Ao mesmo tempo em que o governador Leonel Brizola encampava no Rio Grande do Sul, com a International Telephone and Telegraph, os americanos não entendiam o que estava acontecendo porque Brizola era cunhado do presidente da República.
- E sobre John Kennedy?
- Pressionado pelo Congresso e pela mídia americana, declarou naquela ocasião que os Estados Unidos não podiam ficar contra toda a nação brasileira por causa do gesto isolado de um governador estadual que, segundo ele, “não tem sido amigo nosso”, deixou bem claro. John Kennedy anunciou naquela ocasião que o meu pai iria para Washington conversar com ele.
- Foi logo?
- Sim, no dia três de abril os dois se encontraram com Kennedy o esperando na escada do avião, o que demonstrava a importância que ele dava para um entendimento com o Brasil. Ele falou no Congresso americano, reafirmando na ocasião o propósito do Brasil manter sua linha de integração do continente, sem passar de nenhum bloco político-militar, além de conceder uma entrevista coletiva no National Press Club e depois ir para Nova York, onde desfilou em carro aberto pela Broadway com direito a chuva de papéis picados caindo dos edifícios. Conversaram com Nelson Rockefeller, Adlai Stevenson e U Thant, o secretário geral da ONU.
- Tem uma pergunta que não quer calar: Jango e Brizola se afastaram até mesmo no exílio?
- Meu pai não era um homem rancoroso, pelo contrário, pois concordou em receber Carlos Lacerda, seu algoz civil em 1964, quando ele tentava formar a Frente Ampla. Houve até um reencontro em 1976, em uma bela tarde, quando o porteiro eletrônico e a tia Neuza, sua irmã, foi visitá-lo, logo perguntando: “Escuta, Neuza, onde está o teu marido?”. Ela lhe disse que ele estava no escritório e sugeriu que fosse lá. Meu pai foi e bateu na porta. O resto, quem contou em depoimento foi o próprio Brizola: “Quando bateram na porta, senti que o Jango. Meu gesto foi instintivo e rápido. Abri a porta e realmente ele estava ali, olhando-me fixamente. Não hesitamos e ficamos abraçados por algum tempo. Choramos”. Jango falou no encontro: “Brizola, preciso te dizer algumas coisas, resolvi tomar umas atitudes para terminar esse exílio, tenho pensado nos acontecimentos e confesso, reconheço minha culpa”. Dias depois Jango morreu.